Especial Pastagens: Um caso de sucesso com pastejo contínuo sustentável, revista DBO, novembro 2008
Por Maristela Franco
Por detrás da fala mansa, que guarda forte acento pernambucano, apesar dos 32 anos vividos no interior de Goiás, esconde-se um espírito inquieto. José da Rocha Cavalcanti não gosta de ideias prontas. Tudo em sua Fazenda Providência do Vale Verde, localizada no município goiano de São Miguel do Araguaia, é diferente, apesar de a propriedade, à primeira vista, assemelhar-se a tantas outras da região.
Cavalcanti acredita no pastejo contínuo, quando muitos técnicos associam esse método com baixa produtividade e pouco lucro. Também defende a divisão do rebanho em lotes pequenos para preservar o bem-estar dos animais. Não desmama os bezerros, processa seu próprio sal mineral e nunca usou um litro de herbicida.
Na varanda da sede da fazenda, ele explana suas idéias calmamente, em meio ao calor modorrento de 38 graus à sombra, típico dos cerrados goianos no auge da seca.
“Muita gente vê o pastejo rotacionado como uma panacéia, sem considerar os riscos inerentes a esse modelo, que exige maiores investimentos em infra-estrutura, além de ser dependente de adubos, cujos preços dobraram entre 2007 e 2008. Aqui – aponta as pastagens desidratadas pelo sol –, eu tiro carne de pedra. Faço isso, sem aumentar a lotação e os custos, mas favorecendo o desempenho dos animais, que chegam a ganhar 1,4 kg/cab/dia nas águas, exclusivamente a pasto”, diz o pecuarista de 55 anos, agrônomo, natural de Recife, que, apesar das dificuldades, produz anualmente 5.340@ líquidas em801 hectares de pastagens, ou 6,65@/ha, contra 4@ da média nacional.
“Os adeptos do rotacionado pensam apenas em produtividade de massa forrageira e altas lotações. Com isso, criam uma imagem de eficiência. Eu pergunto, porém, o que é mais vantajoso: produzir 10.000@ gastando 9.000@ ou produzir 5.000@ gastando 3.000@?”, indaga Cavalcanti.
“Não busco maior produção de carne/ha e sim maior lucratividade/ha, dentro da minha realidade. Eis o ‘x’ da questão, freqüentemente menosprezado pelos defensores do atual modelo de intensificação pecuária”, ressalta o produtor.
Segundo ele, o rotacionado tem seus méritos, mas não deve ser visto como única alternativa de manejo de pastagens, muito menos utilizado de forma indiscriminada, sem avaliação econômica. “Para minhas condições edafoclimáticas e meu sistema de produção, baseado na cria/recria/engorda, o pastejo contínuo com carga animal variável é a melhor opção”, afirma Cavalcanti.
DESAFIO
A Fazenda Providência do Vale Verde tem 1.100 ha e está encravada no Vale do Araguaia, próxima à Ilha do Bananal, na divisa de Goiás com Tocantins e Mato Grosso. Essa região tem índice pluviométrico de 1.600 mm/ano, mas as chuvas se concentram entre 15 de outubro e 15 demarço. Além disso, as temperaturas são elevadas (30 a 38°C) e a altitude, baixa (200-300 m), fator pouco favorável ao plantio de culturas graníferas como o milho.
“Em 1976, quando meu pai, Carlos da Rocha Cavalcanti, decidiu vender as terras que possuía no Nordeste e buscar novas fronteiras, deixou-me escolher o lugar onde iniciaria minha vida de pecuarista, já que eu havia acabado de me formar em agronomia, pela Universidade Federal de Viçosa (MG). Fui ao Pará, ao Mato Grosso, mas simpatizei com São Miguel do Araguaia, justamente pela aptidão pastoril de suas terras”.
Após a morte do pai, coube-lhe por sorteio uma gleba tipicamente de cerrado, com solos muito ácidos (pH de 4,2) e pouco férteis. “Ao examinar análises de meus solos, um técnico me perguntou, brincando, se neles nascia alguma planta”, conta o agrônomo, explicando que, para corrigir esse perfil químico é preciso gastar muito dinheiro.
Como a fazenda tem 800 hectares de pastagens e se estima que sejam necessárias 4 t/ha de calcário para correção da acidez, os gastos apenas com esse insumo, sem considerar mão-de-obra e combustível, seriam de R$ 243.200, com a tonelada a R$ 76. Já a despesa com adubos ultrapassaria R$ 472.800.
Esses valores somados equivalem a quase 500 bois gordos. A propriedade fica a 525 km de Goiânia, o que torna os insumosmais caros, devido ao frete.
Mesmo que fizesse esses investimentos aos poucos, Cavalcanti teria de pedir empréstimo a bancos, incorporando risco a seu negócio. “Quando se entra nessa roda-viva, não dá pra desistir no meio do caminho, pois é preciso honrar os compromissos; colocar mais animais no pasto, para aproveitar toda a massa forrageira produzida; confinar ou investir mais em suplementação na seca, etc.
É muito arriscado fazer isso numa região com regime de chuvas curto, ou seja, onde se tira menor proveito da adubação nitrogenada. A não ser que eu instale um pivô na fazenda. Mas aí já começamos a extrapolar o limite do razoável, pois sou um pecuarista de porte médio e não tenho outras fontes de renda, ao contrário dos empresários que se tornam fazendeiros da noite para o dia e decidem desembolsar milhões em projetos hipertecnificados”.
RENTABILIDADE
José Cavalcanti sabe que está indo contra a corrente; afinal, até o governo federal defende a intensificação pecuária para diminuir pressões sobre a Floresta Amazônica. Mas não liga.
Nem quando o chamam de romântico e idealista, em tom condescendente ou provocativo. “A intensificação quase sempre é vista de forma unilateral. Muita gente se esquece de que, ao colocarmos mais bois por hectare, poluímos ainda mais o planeta, pois a emissão de CO2 torna-se maior do que o volume captado pelas pastagens. Sem falar na contaminação do solo e fontes hídricas pelo uso intensivo de adubos e agrotóxicos.
Quantos quilos de carne podemos produzir por hectare de maneira sustentável, com boa lucratividade? Essa é a conta que me interessa”.
Até 2006, José da Rocha Cavalcanti fazia confinamento, mas em 2007 e 2008 ele preferiu vender parte dos animais na recria, pois o preço do boi magro estava compensador e os custos de arraçoamento muito elevados (veja análise econômica de seu sistema de produção em quadro à parte). Segundo ele, a fazenda precisa produzir riqueza e não dívida e estresse para o proprietário, quando este vê sua conta fechar no vermelho. “Quem tem pouca terra e depende exclusivamente da pecuária para sustentar a família, além de manter seu quadro de funcionários motivados, com carteira assinada e bons salários, precisa planejar bem suas ações. Eu estou formando meu quinto filho com esses 800 hectares”, conta orgulhoso.
Rentabilidade de 8,6% sobre o patrimônio
Em setembro deste ano, o rebanho de Cavalcanti somava 1.170 cabeças, das quais 55,5% eram fêmeas com mais de dois anos. Pertencente à quarta geração de selecionadores da marca Nelore Irca, que neste ano comemora 93 anos de existência, ele comercializa anualmente 60 tourinhos e 40 fêmeas registradas. Mas, ao calcular sua rentabilidade, faz questão de excluir o valor agregado pela genética às 5.340@ líquidas que produziu em 2007, para possibilitar comparações com outros projetos de pecuária de corte.
Na análise econômica realizada por Alexandre Mendonça de Barros, professor da Fundação Getúlio Vargas e consultor da MB Agro, essas 5.340 arrobas foram cotadas a preço de gado comercial, pela praça de Goiânia (R$ 85/@, até 15 outubro).
“Chegamos a um faturamento anual de R$ 440.706, ou seja, R$ 550/ha. Como o custo operacional foi de R$ 303.080, o pecuarista obteve receita líquida operacional de R$ 137.626 (retorno de 31,2%). Considerando-se o valor da terra na região de São Miguel do Araguaia (R$ 2.000/ha), a rentabilidade sobre o patrimônio foi de 8,6%.
Para uma propriedade de porte médio, que faz ciclo completo e conta com baixíssimo estoque inicial de recursos, esse é um resultado muito bom”, diz o economista.
Segundo o anuário Anualpec, da Consultoria AgraFNP, em 2007 as fazendas de porte semelhante (500 a 800 UA), que se dedicavam à cria/recria/engorda extensiva (no caso, pastejo contínuo tradicional, sem carga variável), registraram receita líquida operacional de 25% e rentabilidade sobre o patrimônio de 1,3%. Já naquelas que faziam ciclo completo intensivo, esses índices foram de -22% e 0,9%, respectivamente.
Mendonça de Barros enfatiza que um sistema de produção deve ser entendido a partir de suas restrições, como baixa disponibilidade de capital, meio ambiente adverso etc. “Frequentemente se afirma que, se não forem realizados investimentos e utilizados insumos na atividade pecuária, ela tenderá a desaparecer por sua baixa eficiência. Essas afirmações padecem de sentido econômico. Não é correto fazer generalizações sobre sistemas de produção. Sua eficiência deve ser avaliada a partir das restrições de capital de cada propriedade. Nesse sentido, a Fazenda Providência do Vale Verde é um exemplo de pecuária eficiente no Brasil”.
Carga animal variável, ajustada à forragem
O método de pastejo contínuo tem sido utilizado há gerações e ainda predomina em 90% das fazendas de gado de corte do País. Mas a maioria de seus adeptos faz manejo extensivo, ou seja, não ajusta a carga animal à forragem disponível nos pastos, em geral enormes, levando-os à degradação. José da Rocha Cavalcanti não faz parte desse clube. Ele dividiu seus 801 hectares de pastagens em piquetes relativamente pequenos (veja descrição do Método Irca na página seguinte). Além disso, criou um esquema de monitoramento das pastagens, com base em notas ou escores, que lhe permite verificar se a lotação está adequada ou não à oferta de forragem.
Cavalcanti faz pastejo contínuo com carga variável, método que o professor Sila Carneiro Filho, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, considera tão bom quanto o rotacionado, quando bem-feito. “Se o produtor ajusta a lotação à oferta de forragem; se não deixa a gramínea passar do ponto nas águas, por falta de animais para consumi-la; se intuitivamente respeita as necessidades da planta, quando chove abaixo do esperado; se não castiga o capim no inverno, colocando na área mais gado do que ele suporta, o pastejo contínuo dá resultado positivo e pode sustentar boas lotações”, afiança.
Equívocos comuns, segundo o Prof. Sila Carneiro Filho da ESALQ:
1º) Uso do termo “sistema” para definir modalidades de pastejo.
Segundo o professor Sila, sistema é um conjunto de fatores (clima, solo, plantas, animais, infra-estrutura, insumos etc.) organizados para a produção. O termo correto é método de pastejo ou, para ser mais preciso, método de colheita de forragem.2º) Uso do termo “pastejo contínuo” sem considerar que…
Não existe colheita contínua de forragem por parte dos animais, o que existe é presença contínua desses animais na área. Um perfilho (unidade básica de crescimento da planta) somente é visitado a cada 30 dias nesse método de pastejo, devido à menor lotação por hectare.3º) Confusão de “pastejo contínuo” com extensivismo.
A maioria dos pecuaristas pensa que fazer pastejo contínuo é colocar um grupo de animais numa área e largá-los lá, sem monitoramento, sem meta nenhuma. Isso, na verdade, é ausência de método, diz Sila, é puro extrativismo dos recursos naturais disponíveis.
É verdade que o risco de errar é menor no rotacionado, afirma o professor. “Se o pecuarista tem 30 piquetes e usa um deles a cada dois dias, estará concentrando os animais em um/trinta avos da fazenda. Caso cometa algum erro de manejo, ele poderá corrigi-lo no dia seguinte, evitando danos ao restante da área. No rotacionado, as mudanças são mais bruscas, mais visíveis. Em um/dois dias, o capim passa, digamos, de 1 metro de altura para 30 cm. Já no pastejo contínuo, é preciso ter um olho muito bom, pois as mudanças na pastagem são sutis e todos os piquetes ficam ocupados ao mesmo tempo, todo o tempo, exigindo maior atenção do manejador”, diz Sila.
OLHO DE ÁGUIA
Na Fazenda Providência do Vale Verde, o olho que enxerga essas mudanças sutis é o do capataz Donizete dos Reis. Ele percorre a propriedade, observando os pastos e lhes conferindo notas de 1 a 9. O pasto considerado ideal é o de nota 5, que apresenta a maior quantidade de folhas disponíveis para alimentação dos animais. As piores são as de notas 1 (rapado) e 9 (passado). As demais são intermediárias: quanto mais próximas de 5, melhores; quanto mais próximas dos extremos, piores.
Hoje, o olho de Donizete está tão treinado que ele dá notas partidas: 4,5; 7,5 etc. O fato de os piquetes serem relativamente pequenos ajuda nessa avaliação. A freqüência do monitoramento varia de acordo com a estação do ano. Na época de maior crescimento das gramíneas, realiza-se uma inspeção a cada 10-20 dias; na seca, a cada 40 dias. Se o clima se comporta de forma diferente do previsto, encurta-se o intervalo de tempo entre as “leituras”.
Além do pasto, os bovinos também têm seu escore corporal avaliado por meio de notas. Um animal magro recebe nota 1 e um gordo, nota 5. “Criamos também uma forma de pontuar a média dos lotes, com registros de possíveis variações. Por exemplo: se o lote tem nota 3, mas nele encontram-se vacas de escore 5 (muito gordas), nós registramos na planilha 3/5”, explica José Cavalcanti.
Esse sistema de dupla avaliação é fundamental para o bom manejo dos piquetes, que são formados principalmente com andropógon (69% da área de pastagem) e braquiarão (17,85%), com alguns pequenos módulos de tanzânia, mombaça, massai e quicuio. “Desenvolvemos um conhecimento instintivo do comportamento desses capins. Claro que é possível estimar a massa forrageira disponível no pasto com ajuda de instrumentos, como o quadrado ou o disco medidor australiano, mas preferimos trabalhar com parâmetros visuais, que facilitam a tomada de decisões. Se um pasto e seu lote recebem notas baixas, é porque a carga está alta, exigindo medidas corretivas, como a substituição dos animais por outros mais leves. Se ambos (pasto e lote) obtêm boas pontuações, é porque acertamos no manejo”, diz o pecuarista.
Prescrição padronizada de manejo evita confusões
*Método descrito com base nas regras estabelecidas pela Society for Range Managment. Os traços e os dois pontos não têm conotação matemática, apenas servem para separar os números.
Devido às diversidades edafoclimáticas e à complexidade dos sistemas de produção no mundo, existe tamanha quantidade de métodos de pastejo que a Society for Range Managment, instituição norteamericana que se dedica ao estudo da ecologia de pastagens, sugeriu que eles fossem descritos de forma padronizada, utilizando-se uma sequência numérica separada por um traço, uma vírgula e dois pontos, que neste caso não têm função aritmética
(veja ilustração).
Dessa forma, qualquer técnico ou pecuarista poderá visualizar com facilidade os itens básicos do método de pastejo usado em determinada fazenda, evitando confusões.
José da Rocha Cavalcanti trabalha com 50 pastos, de 5 a 30 ha, e um lote de animais por pasto durante os 365 dias do ano, ou seja, com zero dias de descanso.
A divisão das pastagens em 50 piquetes não é casual. Tem a ver com o tamanho ideal do lote, que ele estipulou em no máximo 30 cabeças. Com base nesse critério, a área da pastagem pode variar de 15 ha a 25-30 ha, dependendo da fertilidade do solo, do clima local, do tipo de gramínea, etc. O importante é que o piquete tenha capacidade de suporte para pelo menos 10 anos.
SEM CANSAÇO
A meta de José Cavalcanti é evitar que as gramíneas recebam pontuação baixa e tenham de ser poupadas ara recuperação.
“Meus pastos não descansam porque não cansam”, brinca ele, garantindo que o pastejo contínuo também não gera desperdício de forragem, ao contrário do que muitos pensam. O professor Sila Carneiro
concorda. Segundo ele, a perda de forragem deve-se à ineficiência na colheita do capim, não ao método de pastejo.
Por exemplo: se o produtor rotacionar um piquete de mombaça com período de descanso fixo de 30-35 dias, colherá forragem velha e de baixa qualidade, como também ocorre com os adeptos da “fartura” (leia-se sobra de capim) no pastejo contínuo.
Sila frisa que existem muitos equívocos em manejo de pastagens. Um dos mais comuns é considerar métodos de colheita de forragem como antagônicos. Tanto o rotacionado e quanto o contínuo podem ser técnica e economicamente viáveis, dependendo do sistema de produção, da capacidade de administrar riscos e da perícia do manejador. Uma forma de errar menos, diz o professor, é guiar-se pela altura do capim. Pesquisas conduzidas pela Esalq mostraram que o braquiarão sob pastejo rotacionado, por exemplo, deve ser colhido quando a sua altura atingir 25 cm, retirando-se os animais da área assim que a altura recuar para 10-15 cm. Sob pastejo contínuo, o ideal é manter o capim sempre a 20-40 cm do solo.
Nos dois métodos, o uso da pastagem pode ser mais ou menos intenso. “O que importa é administrar bem os recursos disponíveis. Se o pecuarista adubar, irrigar e colher mal a forragem, desperdiçará insumos e terá prejuízo. Trabalhar com forrageiras adequadas a cada sistema também ajuda bastante. Os panicuns, por exemplo, não são indicados para pastejo contínuo, pois precisam de um período de descanso para recompor suas reservas nutricionais e respondem bem à adubação nitrogenada, por isso se constituem em boa opção para quem faz colheita rotativa de forragem com base nessa prática”, diz o professor.
LOTAÇÃO
José Cavalcanti não se opõe à adubação em si. Já adubou moderadamente seus pastos de tanzânia e mombaça, que utiliza para alojar categorias mais exigentes, como as primíparas. Contudo, não admite dependência excessiva de insumos. Prefere soluções mais baratas e sustentáveis. Por exemplo: nunca calcula a lotação dos pastos considerando o consumo de 100% da forragem disponível; deixa sempre um percentual de capim para incorporação ao solo, na forma de matéria orgânica. É uma maneira natural de repor parte dos nutrientes extraídos do solo. “Meu sistema de produção está inserido no conceito de sustentabilidade. Aliás, os pecuaristas precisam começar a medir, quantificar, monitorar os prejuízos que causam ao meio ambiente com suas práticas de
alta produtividade”, alerta.
Nas águas, Cavalcanti trabalha com 1,5 a 2 UA/ha, mas a lotação cai para 1,1 UA/ha na seca, quando ele vende animais. “Sou um criador, não um invernista. Digo que tenho datas de venda e não pesos de venda, embora precise colocar o máximo possível de quilos nos animais até à chegada do período estipulado para comercialização. No ciclo completo, cada etapa de produção deve ser nota dez. Não adianta ter eficiência apenas na recria, por exemplo”, diz o agrônomo. Ele procura explorar todo o potencial produtivo do andropógon nas águas, porque esse capim suporta maior pressão de pastejo (mais kg de peso vivo por kg de matéria seca produzida), enquanto as braquiárias prestam-se muito bem ao uso na seca.
Sobre limpeza de pastos, Cavalcanti tem opinião formada: “Nunca comprei um litro de herbicida na minha vida, para não eliminar as leguminosas nativas. Faço apenas roçagem manual ou mecânica”. Como a incidência de vermes no rebanho é baixa, ele gasta pouco com vermífugos. Já os suplementos minerais são preparados na fazenda, devido ao menor custo e por se tratar de produto formulado pelo agrônomo para as condições específicas da propriedade. Além de sal branco, minerais e proteína verdadeira (farelo de soja), os suplementos ainda contêm monensina utilizada como coccidiostático.
O conforto em primeiro lugar
Para obter o melhor desempenho a pasto, os bovinos precisam de comida farta e muita tranqüilidade. O estresse pode gerar irritação, inapetência e, conseqüentemente, menor ganho ou até perda de peso. José da Rocha Cavalcanti leva o bem-estar animal muito a sério, pois seu sistema de produção depende de boas performances individuais. “Se c o l o c a rmo s quatro animais por hectare, ganhando 600 g/cab/dia, produziremos 2,4 kg/ha/dia. Se, no mesmo hectare, alojarmos apenas dois animais, dandolhes maior conforto e possibilidade de selecionar a forragem, poderão engordar
1,2 kg/cab/dia, garantindo ao produtor os mesmos 2,4 kg diários que ele obteria com a lotação dobrada”, argumenta
o pecuarista.
Cavalcanti garante conseguir nas águas (outubro a março), ganhos entre 1 e 1,4 kg/cab/dia em machos inteiros, com idade entre 22 e 27 meses, mantidos em pastos de andropógon com 22 ha cada e recebendo apenas
sal mineral. Claro que não se pode desconsiderar a participação do efeito compensatório e da qualidade genética dos animais nesse ganho, mas, segundo Cavalcanti, a principal explicação para um desempenho tão superior à média, que é de 600-800 g/cab/dia, está no tamanho reduzido dos lotes, compostos por no máximo 30 animais.
Esse número não é cabalístico, mas fruto de observações. “Os bovinos têm forte instinto gregário, mas pouca memória. Eles só gostam de viver ao lado de quem conhecem. Em lotes compostos por mais de 30 cabeças, eles perdem a noção de quem é quem no lote. Quando isso ocorre, ficam estressados e engordam menos”, relata o pecuarista, cujas idéias têm conquistado adeptos (veja quadro da página 58).
CADEIA DE VIRTUOSIDADES
Segundo Cavalcanti, quando os animais são agrupapos em pequenos núcleos, cria-se uma “cadeia de virtuosidades produtivas”: a taxa de fêmeas prenhes aumenta, nascem mais bezerros, que desmamam mais pesados e são abatidos mais cedo. Tudo isso porque eles vivem em situação de conforto. Cavalcanti utiliza uma fórmula clássica da nutrição na defesa de sua tese: a energia disponível para produção é igual à energia consumida pelo animal, menos a energia que ele usa para mantença corporal.
“Na literatura”, diz Cavalcanti, “encontramos apenas trabalhos relacionando demanda de energia para mantença com adaptabilidade ao ambiente, tamanho do bovino ou idade. Ninguém estudou ainda quanto essa demanda pode variar em função da qualidade da convivência do animal no lote. Se ela é confortável, harmoniosa, sobra mais energia para produção. Já constatei isso, várias vezes, a campo”.
A movimentação de lotes é feita com cautela e visão de longo prazo, para não provocar estresse. “O ideal seria que os lotes permanecessem o ano inteiro no mesmo piquete, mas isso nem sempre é possível por causa da necessidade de adequação da carga animal aos pastos”. Uma regra de ouro é não introduzir animais novos em grupos estruturados, compostos por indivíduos que já se conhecem e vivem juntos há algum tempo. É prejuízo na certa. Perde-se toda a seqüência de benefícios produtivos obtida até então, em função do bem-estar coletivo.
FORMAÇÃO DOS LOTES
José Cavalcanti valoriza muito o conceito de “família bovina”. As vacas permanecem com suas crias até os 10-12 meses. Ele não desmama os bezerros, por acreditar que o estresse da separação mãe-filho provoca na fêmea um dispêndio de energia maior do que o exigido pela amamentação. Deixa que o desmame ocorra naturalmente. A própria vaca afasta o bezerro quando sente que chegou o momento de pouparse para o novo filho que vai nascer. “Outro dia, vi dois bezerros mamando na mesma vaca, porque a mãe de um deles já estava em processo de desmama. Ele ali, satisfeito, e a mãe do amigo dando leite para os dois”, conta Cavalcanti.
A utilização desse método em nada prejudica a taxa de prenhez, que, nos últimos quatro anos, registrou média de 93% nas nulíparas (fêmeas que nunca pariram), 81,5% nas primíparas e 89,33% nas multíparas.
Quando elas estão perto de dar cria, os bezerros são transferidos para outro piquete, mas aí já estão desmamados e integrados ao grupo contemporâneo
(fêmeas e machos nascidos na mesma época). A separação por sexo somente é realizada em dezembro/janeiro, quando as novilhas completam 13-14 meses. Cerca de 20-40 são descartadas e as restantes destinadas à reposição.
A maioria entra em manejo de inseminação com 22-24 meses, e as que emprenham formam novo lote.
CUIDADOS ESPECIAIS
As primíparas são reunidas em grupos específicos, de no máximo 25 cabeças, e recebem cuidados especiais para garantir a reconcepção, que depende muito da boa condição nutricional no terço final da gestação. Por isso, elas são alojadas nos melhores pastos, formados com tanzânia e mombaça. Trata-se de um lote delicado, exigente, que deve ser manejado com carinho e tranquilidade. Elas permanecem juntas até o diagnóstico de gestação, quando se faz um reagrupamento em função do índice de prenhez.
Como a fazenda está com o rebanho estabilizado, cerca de 200 fêmeas são vendidas anualmente: 40 na idade de sobreano, por questões técnicas; 120 já adultas, devido à pressão de seleção ou por estarem vazias, e 40 por terem alto potencial genético (fêmeas registradas). Já os machos passam por avaliação genética aos 15-17 meses. Aqueles que são classificados como tourinhos formam grupos à parte, e os demais permanecem juntos até que sejam vendidos para recria ou para o frigorífico.
Prova dos nove
José Henrique Pereira Martins de Andrade, proprietário da Fazenda Nova América, também no município de São Miguel do Araguaia, sempre ouvia Cavalcanti falar sobre as vantagens dos lotes pequenos, mas se mantinha cético.
Um dia, decidiu tirar a prova dos nove e descobriu que o vizinho tinha razão. Andrade tinha 59 bois erados (quase três anos), com peso de 450 kg, mas ainda magros (sem gordura de cobertura). Era final das águas (abril/maio), não havia mais como engordar os animais somente a pasto e ele decidiu semi-confiná-los. Ao mesmo tempo, colocou outro lote de 25 novilhos, 10 meses mais novos e 100 kg mais leves, num piquete à parte, suplementados apenas com sal mineral.
Depois de 67 dias, o lote semi-confinado havia engordado 102 kg/cab, ao custo de R$ 239/cab. Já o segundo registrara o mesmo ganho de peso (102 kg), ao custo de R$ 8/cab. Técnicamente, esses dois grupos não poderiam ser comparados, porque tinham peso e idade diferentes, mas a experiência, segundo Andrade, foi reveladora.
“Hoje, acredito que a divisão dos animais em lotes pequenos melhora o ganho de peso”, diz o produtor, cuja fazenda tem 1.704 hectares e abriga 2.000 cabeças. Andrade também faz ciclo completo e se diz integrante da classe de pecuaristas que “carrega a carga nas costas, ou seja, não é dono de banco, não tem outras fontes de renda, nem vive na ilha da fantasia”.
Como seus pastos ainda são relativamente grandes, ele não consegue trabalhar apenas com lotes pequenos, mas se pudesse não hesitaria: os animais tornam-se mais produtivos, são mais fáceis de manejar e ficam menos estressados.
Menos estresse, mais produção.
A organização social dos bovinos a pasto em nada se parece com a hierarquia existente num batalhão militar, no qual o sargento dá ordens e os soldados obedecem. Assemelha-se mais com a de uma equipe, um time. Por isso, se o pecuarista separa animais que se dão bem juntos, desestrutura o grupo.
“É como se, numa equipe de futebol entrosada, o zagueiro se machucasse. Nesse caso, quem vai desempenhar sua função? Ele pode não ser o líder do grupo, mas desempenha um papel fundamental. A convivência diária, a distribuição de tarefas, os papéis vão ter de mudar.
Já observei que esses papéis, depois de estabelecidos, geralmente são mantidos. Evito mexer até nos vizinhos de pasto, para não gerar estresse, que reduz o ganho de peso”, explica Cavalcanti.
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